Coração conta diferente

sexta-feira, 10 de julho de 2015


- Ai...
- O que é que você tem, Tiago?
Quem falou ai fui eu. Quem me perguntou o que é que eu tinha foi o Renato, que fica sentado do meu lado e pode vigiar tudo o que eu faço. Ele deve ter pensado que alguma coisa estava doendo. Mas esse ai não era de dor.
Então suspirei de novo, mas agora sem falar nada. Esse suspiro saiu como um sopro, que balançou as folhas do meu caderno. E pra dentro, baixinho, pra ninguém escutar, eu gemi: Ai, Adriana...
É que ela levantou pra ir ao quadro. Logo hoje, que ela soltou o cabelo comprido daquele rabo-de-cavalo que ela costuma usar e me dá tanta implicância. O cabelo dela é tão lindo...Parece de seda e tem um brilho que eu ia dizer que parece o sol. Mas a Adriana tem cabelos pretos e sol moreno fica meio esquisito...
7 X 5 = 45...O Renato começou a rir e cochichou comigo:
- Essa menina é meio lelé.
Eu não ri e nem falei nada. Mas uma coisa, lá dentro da minha cabeça me disse que 7X5= 35. Como foi a Adriana que tinha escrito no quadro, eu não percebi o erro. Aquele 4 que ela desenhou tão certinho no lugar do 3 era tão bonito! Até os números da Adriana são lindos!
- Tá errado, tia! Tá errado! – gritou, toda esganiçada, a Carina.
A tia então mandou a Adriana sentar. A Carina correu e meteu o apagador em cima daqueles números tão bem desenhados, corrigindo com um 35 tão sem graça quanto sua voz.

A Adriana voltou pro lugar e eu nem pude ver se ela estava com a cara muito vermelha, porque o cabelo solto agora tapava tudo. Ela ficou com cabeça abaixada um tempão. Eu senti que ela estava triste e fiquei muito triste também. Aí, arranquei a beiradinha da última página do meu caderno e escrevi:
Dobrei meu bilhete. Prestei atenção à tia. Ela ficou de costas pra passar outra conta no quadro. Fiz bem depressa uma bolinha com o bilhete dobrado, mirei e joguei. Ela caiu no colo de Adriana.
Meu coração bateu depressa. Acho que eu é que fiquei vermelho... Ai, ai, ai, meu coração martelando tantos ais no peito. Tudo em silêncio pro Renato não perceber. Que bom que nem ele nem a Carina viram eu jogar a bolinha!
A Adriana custou a pegar o bilhete. Pôs a na frente dela e foi desamassando bem devagar. Ela leu, depois guardou dentro do estojo. Nem olhou pro meu lado.
De repente, me lembrei de uma coisa terrível: não tinha posto meu nome no papel. E se ela achasse que era outro menino que gostava dela? E se ela também gostasse de outro menino e, por causa do bilhete sem nome, fosse falar com ele no recreio?
Então, a tia me chamou. Eu só pensava naquela confusão, imaginando a Adriana apaixonada pelo Renato e os dois indo embora, de mãos dadas, no fim da aula.
- Tá errado! Tá errado! Deixa eu fazer, tia?
Eu olhei para o quadro e entendi por que é que a Carina estava gritando outra vez: 8x6=36... Ia apagar pra refazer, mas a tia me mandou sentar.
Fui, morrendo de sem graça. O Renato me gozando só com o jeito de olhar pra mim.
Cheguei na minha carteira e vi uma bolinha de papel bem em cima do meu caderno.
Quando ninguém estava mais me olhando, eu disfarcei e abri:


 No cantinho do papel estava assinado: Adriana.

Lino de Albergaria
Coração conta diferente
Editora Scipione, São Paulo



PS: Esse era um dos textos que eu mais adorava ler no ano 2000. Eu estava na terceira série e tinha uma amiga chamada Carol, que era muito parecida com a personagem Adriana. Uma vez, eu falei isso pra ela, mas ela nem tchum.